A dor não é a pior coisa do mundo

Rafaela Cordeiro
3 min readJan 27

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Os amantes, René Magritte.

A vida se concentra, de vez em quando, em nos ensinar lições muito específicas. Provavelmente essa é uma forma romântica — e infantil — de encarar os mesmos erros sendo repetidos vez após vez. De qualquer forma, alguém tem que tingir de sentido toda besteira que acontece. Para Bukowski, os responsáveis por tanto geralmente são os poetas, as putas ou os que morrem de amor.

Não sou poeta e nem boa amante. Meu carma é morrer de amor.

Se eu pudesse escolher meu nome, seria Selma, o nome de uma das personagens do meu livro favorito. Ela é resignada, sempre esperando pelo pior. Possui um marido, um filho, uma vida confortável no Leblon. Ainda assim, ela espera. A doença, a morte, o “já é, mas ainda não”. Falta alguma coisa. Ela não sabe o que, então se divorcia. O filho morre de AIDS. Ela se vê sem amigos e marginalizada pelos que antes eram íntimos. Curiosamente, depois de tudo ter dado incrivelmente errado, acaba dando certo. Ela se encontra; enquanto mulher, mãe, humana. Ponto. Às vezes tudo que a vida exige da gente é coragem. Ela me lembra disso.

No amor, sou como a Selma. Já é, mas ainda não. Procuro por camadas. Busco incessantemente por brechas de análise para me entregar à pessoa errada e, coincidentemente, fugir da certa. Como a mulher que procura diligentemente a moeda que perdeu, eu procuro por alguém que ainda não conheço, mas sei quem é. Ou, no mínimo, sei que vou saber quando encontrar. E é por isso que é muito fácil morrer de amor e continuar vivendo.

Em um dia qualquer, duas pessoas estão no ônibus. Eu do lado da janela, ele no corredor. O sol bate no olho dele e o tom fica tão bonito, e ele está sorrindo para mim. Imediatamente fico grata pela existência dele, pelo momento de lucidez em uma rotina tão automática e pela quantidade absurda de variedades de tons de castanho que podem estar contidas em um olho humano. Não, não era alguém com quem eu me envolvi. E nem alguém com quem eu queira me envolver no futuro. Era uma pessoa aleatória, mas em quem eu vi beleza. É quase que parte de mim enxergar profundidade nas coisas mais banais — como ter um olho e sentar do meu lado no ônibus.

Morrer é enxergar beleza na vida. Morrer de amor é enxergar beleza nas pessoas.

Uma amiga muito querida me disse que é necessário amar a si antes de amar o outro. Eu sei que é clichê, mas eu gosto. Se eu não morrer de amor por mim — e isso inclui a abnegação das minhas próprias vontades em nome do meu bem-estar, algo que desejamos frequentemente que os outros façam por nós — , se torna impossível nutrir um amor saudável pelo outro. E eu quero amar. Quero amar o mundo. Quero amar os vulneráveis. Quero acolher quem não tem colo. Quero estar ali. Fiquei tempo demais distante de mim…

Diferente da Selma, eu tenho uma esperança eterna em um Deus que foi hábil o suficiente para criar vida e tudo o que existe. O amor nasce dele e flui para os filhos dos homens; por isso a distorção, os ciúmes, a imperfeição. O amor, em Deus, é perfeito. Não pesa, levanta. Não magoa, abraça.

Quando a dor chega depois de amar, o Deus Eterno compreende melhor do que ninguém. Afinal, ele também amou sobremaneira sua criação e assistiu enquanto tudo estava potencialmente dando errado. É um amor que transcende condições, cujo único interesse é redimir tudo em si mesmo.

No fim, o que tudo isso significa é que amar é permitido. E, se a dor vier, ela definitivamente não vai ser tão ruim quanto parece na sua cabeça.

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Rafaela Cordeiro

Aceito ser a segunda em tudo.