o nosso lema é sabotagem e insegurança

Rafaela Cordeiro
3 min readMay 20, 2023
THE METAMORPHOSIS, by Nick Bright

o cara acorda em um dia comum e descobre que tinha se transformado em um inseto horrível. esse é o enredo de a metamorfose, do kafka, e sinceramente… reler é um desafio. sempre. porque é extremamente desconfortável sentir a angústia do protagonista. não é interessante pensar em como alimentamos nossas próprias inquietações mas detestamos acessar a dos outros? talvez não estejamos acostumados com vulnerabilidade orgânica — digo, longe das redes sociais, sem propósito, sem forçar a barra. um inseto, e aí? vamos conversar um pouquinho sobre isso.

kafka era um homem meio amargo por 300 razões bem justificadas. possivelmente isso explica como ele foi capaz de criar essa história curtinha, objetiva, escrita de um ângulo tão indiferente quanto à bizarrice da situação. o protagonista, gregor, é surpreendido com sua nova aparência e com todas as impossibilidades que a acompanham. sua principal queixa é a de não conseguir mais trabalhar para pagar as dívidas dos pais, já que ninguém contrataria um inseto para ser caixeiro-viajante. posteriormente, surge uma complicação ainda mais séria, a saber, como se relacionar com as pessoas se todos o achavam asqueroso.

uma pergunta boba, mas necessária: e se você se transformasse em um inseto? ok, vamos reformular para que ela pareça menos ridícula e caricata. e se você perdesse sua utilidade, seu carisma, seu dinheiro, sua vida conhecida? para alguns, virar um inseto é engravidar. declarar falência. ter alzheimer. enfim, qualquer coisa que saia do script de ser uma pessoa funcional e dentro do roteiro pré-escrito de uma vida padrão.

em tempos de progresso imparável e medidas estatísticas de impacto pessoal, uma reflexão sobre valor parece gatilho de crise de pânico. apesar disso, é importante que pensemos sobre nossos incômodos para que eles parem de se fazer presentes eventualmente. e não em nome de uma funcionalidade impossível, mas sim de uma vida cheia de sentido.

talvez você carregue os sonhos dos seus pais com você, uma necessidade absurda de agradar todo mundo, uma insatisfação crônica, medo constante do futuro, dívidas que nem são suas. atenção: seu cérebro não foi feito para viver constantemente estressado. você não está saudável. se o seu grande medo é uma situação do tipo virar inseto, não precisa temer muito. ela já chegou. o fundo do poço é temer o fundo do poço.

eu digo isso para mim mesma quando sinto medo de coisas que não posso controlar. poxa, nós crescemos. nós sabemos que as coisas dão errado e que, neste momento, diversas catástrofes estão acontecendo em algum lugar distante do Globo. mas você está aqui lendo isso. respiremos.

respiremos.

nosso valor não está associado ao que podemos produzir. muito menos ao que somos — porque isso muda constantemente — , mas sim à potência que carregamos: o aqui e o agora. é tudo que temos, no final. então não há razão para temer o que pode dar errado. excluindo a possibilidade de nos tornamos insetos da noite para o dia, as opções restantes são bem menos dramáticas. vamos nos reinventar, se necessário. porque estamos aqui. por enquanto.

até quando?

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