perigo
eu caí de moto. dentre as inúmeras trivialidades que recheiam o cotidiano, essa me marcou profundamente. foi desesperador ver tanto sangue mas, para além disso, a sensação de não saber como os próximos dias seriam foi aterradora. eu não conseguia parar de tremer, chorar, temer. desde então, meus dias foram meio vegetativos. não me entenda mal, eu estou bem. saudável, na medida do possível. meus ferimentos superficiais já estão se curando.
contudo, a minha cabeça está em pânico. tenho medo de pegar ônibus e não sentir firmeza o suficiente no meu pé machucado. ou de não conseguir vencer o dia seguinte sem que pisem no meu dedo, que está bem prejudicado. meu tornozelo pode inchar — como agora — e me obrigar a voltar para casa. e, nesse caso, como serão os próximos dias? como eu supero isso?
não existe forma alguma de se preparar para as surpresinhas indesejáveis que a vida reserva. tentar premeditar, planejar cuidadosamente cada ação futura, manter sempre à mão uma agenda; no fim, todos estamos à mercê do que o tempo fizer de nós. e de como escolheremos lidar com isso.
minhas feridas ainda doem. andar de moto de novo só daqui há um tempo. mas o pânico que senti passou. o pior cenário não chegou. me descobri completamente ligada ao meu corpo, em suas estruturas mínimas. nunca antes havia sentido tanta vontade de protegê-lo, nutri-lo, cuidar para que ele se recupere o mais rapidamente possível. estar sobrevivendo a isso me fez perceber que talvez eu deva prestar um pouco mais de atenção em mim. no meu corpo. enfim.
o medo é poderoso. maior que ele só a coragem. e é isso que a vida exige da gente, já dizia Guimarães. e quando as coisas ficam difíceis, a gente deve viver devagarzinho. deixando os dias passarem, como sempre passam, e suportando com o máximo de tranquilidade possível o que o nosso corpo pode fazer.
não tem nada de poético aqui.
“e quando a mão não alcança onde coça…?“ (Clarice Lispector, 1964)