Quem olha, vê?

Rafaela Cordeiro
2 min readJan 10, 2023

Anya é uma mulher classuda. É o que os vizinhos dizem, pelo menos. E eu assino embaixo.

Logo cedo, de segunda a sexta, ela costuma sair para o trabalho. Batom vermelho, salto agulha, saias justíssimas que combinam com seus blazers finíssimos. Tudo de qualidade importada, contam. Tudo presente do gringo rico com quem ela tem um caso há anos. Todos concordam que ter um caso é algo horrível, mas com um gringo, não. É só chique.

De segunda a sexta, eu a observo. Ouço o som das crianças brincando de bola na rua, dos vendedores ambulantes oferecendo bugigangas, das pessoas reclamando do calor. Então, quando a tarde vai se aproximando, eu ouço os vizinhos. E eles sempre falam dela. São a minha mais rica fonte de informação.

Ela vai, volta. Sem um fio de cabelo fora do lugar. Parece sempre apressada, como quem tem muito o que fazer, como as mulheres ricas da televisão. Mas ela é minha vizinha, e eu não sou rica. Me pergunto se conviver — ainda que apenas por proximidade territorial — com alguém de classe me torna algum grau mais classuda também. Ora, se a resposta for afirmativa, então o contrário também deveria se aplicar a ela. Me assusto com a possibilidade de atrapalhar o conjunto harmonioso que sua existência oferece.

Os dias vêm e vão, e eu continuo a observar os hábitos dessa criatura estranha, externa. Anya representa uma realidade que nem em sonhos eu poderia conhecer. Afinal, ela trabalha. Ela é classuda. Ela tem um caso com um gringo, como eu já bem disse. Ela parece organizada, séria, assertiva. Parece alguém que eu seria se pudesse.

Um dia, contudo, houve uma quebra na monotonia da rotina de vê-la sair e chegar. Seus passos para fora da casa são vacilantes, como se ela não estivesse certa sobre deixar o lugar. Malas a acompanham, assim como um garotinho que aparenta ter uns 6 anos. Eu não sabia que ela tinha um filho, e também nunca ouvi dizerem. Vai ver ninguém na vizinhança sabia, afinal. É chique manter segredos.

Ela tranca o portão da casa, confere se todas as janelas de fora estão fechadas, olha para o garoto. As ações parecem ritualísticas, quase sagradas. O garoto fica em silêncio, bem como ela. Ambos caminham, juntos, para a saída da rua. E então, como se por mágica, ela me vê, e acena. Como se soubesse que eu a observava ir e vir, e também que a invejava.

Aceno de volta. Sorrio, até. Assisto até que eles sumam na esquina e, pela primeira vez em algum tempo, saio da janela. Arrasto os pneus da minha cadeira de rodas e sigo em direção ao meu quarto, talvez pronta para escrever um livro ou ler vários. Pronta para viver.

Descobri que ir embora é chique.

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